Esse não é um texto sobre ações
afirmativas ou sobre apropriação cultural. Questões que não domino e que não
podem ser debatidas sob o prisma da individualidade.
É apenas um breve manifesto sobre
parte da MINHA construção indenitária.
Metade de mim é árabe e outra metade
não.
Metade da metade que não é árabe, é
afrodescendente e a outra metade dessa metade tem duas metades, uma indígena e
outra branca.
Minha metade árabe se conhece, sabe
sua história, sua língua, aprendeu sua dança, se exibe no nome, se mostra nos
hábitos e é reconhecida pelas manias.
Dessa metade todos tem orgulho, todos
deixam ser, aplaudem os modos e querem saber dos causos.
Sabem até seus “podres”, mas nunca se
esquecem das virtudes.
Vira rua, dobra esquina, essa metade
sempre se enxerga no espelho das metades dos outros, nos olhos e no caminhar
dos “brimos”, que não conseguem esconder seus narizes e nomes.
Se me apresento como libanesa, ninguém abre a boca pra
contestar, está escrito em meu nome, grafado em meu sangue.
A metade afrodescendente se
reconhece, mesmo sem se conhecer bem.
Sabe de pequenina parte da sua
história, aprendeu suas lendas, suas lutas, se exibe nas formas, nos gostos,
nos gestos e até nos medos.
Dessa metade não são todos que se
orgulham. Não querem saber sua verdade, sua origem ou suas memórias. Negam.
Ignoram e atropelam.
Dessa não me deixam pertencer, mesmo
estando impressa em minha forma física (mais nos traços e menos na tonalidade
da pele).
Se digo que sou negra ou afro
descendente, ou fazem piada ou batem o pé pra dizer que não sou, não posso ser,
porque minha pele é clara.
Pior que a negativa do direito de me
definir como metade do que sou é o que motiva essa negativa. O julgamento de
que essa identidade não pode ser minha e que não é o melhor querer para um
indivíduo. Algo que não deveria nem ser almejado, quanto mais pleiteado.
Pouco importa se essa é a minha
percepção como individuo, ou sem me sinto mais igual aos seus iguais.
O amor que tenho à sua ancestralidade
e a identificação com tudo que lhe é inerente também é irrelevante, pois minha
pele não é tão escura, e não me encaixo nos critérios do que é admitido como
padrão desse grupo.
Metade da metade que não é árabe, é
indígena.
Essa eu conheço pouco e reconheço
menos. Sua história não me foi contada, e embora possa estar se mostrando em
seus costumes, gostos e gestos, não sabe disso.
Guardei algumas lendas e aprendi outros
significados com a maior intensidade que pude. Mas não ajudou.
O mundo de fora apaga o que foi
deixado e quebra os espelhos.
Dessa nem tiveram a chance de negar
autodefinição.
Não conseguiram gerar em meu ser a
possibilidade de me apresentar como indígena.
E tem a outra. A metade branca,
possivelmente europeia, de algum país que não sei apontar.
Dessa eu sei nada especificamente e
tudo genericamente.
Conheço mas não reconheço.
Vivo em um mundo dominado por ela com
o sentimento de que dele não faço parte.
Aprendi sua religião, sua língua,
seus costumes e seu pensamento, herdei alguns gostos, gestos e modos.
E mesmo que todos insistam em colocar
um espelho na minha cara, eu não enxergo a mulher branca do outro lado.
Seja por assimilação ou por condição.
Mas eu sei bem, que se um dia eu
quiser criar um enredo, e sair por aí dizendo que sou portuguesa e branca,
muitos irão aceitar.
Minha pele não é tão escura, o
panorama histórico não exclui a possiblidade e é algo digno de ser buscado.
Talvez alguns mais críticos e atentos
contestem essa “branquitude” em um simples olhar aos meus cabelos, o que
poderia ser rapidamente resolvido com um alisamento.
Algumas metades são maiores que outras,
são mais fortes e por isso, maiores, mesmo sendo menores.
Não posso ser tudo que sou, só
metade.
Só posso ser a metade que me deixam
ser.
Para mim, identidade não é apenas o
modelo de apresentação, mas a linha entre apresentação e aceitação.
O que eu digo que sou e o que
entendem que sou (autodefinição e identidade atribuída)
Por isso, se um dia eu lhe disser que
sou negra e afrodescendente, apenas peço que se não puder ou quiser me enxergar
como tal, faça a gentileza de ficar calado.
Não venha me explicar de A a Z, como
crítico analítico que não é, o que não posso ser.
E, principalmente, não tente me fazer
achar que isso é uma honraria, porque não é.
Identidade: “É a forma dos indivíduos
se reconhecerem e de serem reconhecidos, a maneira como se vêem e são
vistos. Assim, aquilo que os outros dizem e esperam dele, passa a fazer parte
do que ele acha que é a sua natureza e modelará o seu perfil, a sua forma de
ser.” (Elizete Silva Passos)